07 junho 2006

Comentário sobre o texto de Saramago

O texto pode ser encontrado no link http://www.releituras.com/jsaramago_conto.asp
Este delicioso texto, O Conto da Ilha Desconhecida de José Saramago, nos possibilita refletir sobre vários aspectos de nosso cotidiano. De forma lúdica somos levados a reconhecer críticas profundas ao funcionamento social, valores humanos e os impactos que nosso comportamento pode gerar ao meio que nos cerca. Selecionei três pontos para comentar a cerca do texto, os quais podem ser vistos como uma bela metáfora das estruturas e comportamentos sociais.
Saramago, ao falar do funcionamento do reino, mostra a diferença de valores dada pelo rei em relação às portas que ocupa, sendo a porta dos obséquios a de maior valor em relação à das petições. Essa desvalorização levava a uma hierarquia de atribuições, talvez melhor seria de incumbências, que apesar da demora tinha seu desfecho selado pelo humor da faxineira. Esta passagem me lembra nossas estruturas burocráticas, lentas, impessoais, cartoriais, em que qualquer reivindicação precisa passar por dúzias de mãos, ser anexada, avaliada, homologada, carimbada, etc... Lembra a própria rotina de se provar, a todo momento, nossa existência real, provar que nós somos nós mesmo. Mas esta prática contrasta radicalmente quando os interesses do cume da hierarquia são grandes. Para casos como esse existe a prática do lobby, o conchavo e as negociatas.
Um ponto muito interessante no conto está na forma de resistência do homem, que determinado a receber o que queria do rei, passou a exercer pressão para ter diretamente com o soberano. Importante notar que essa resistência só foi frutífera quando passava a incomodar o rei, a interferir na imagem e no funcionamento da porta dos obséquios, obrigando o rei a atender o homem solicitante. Uma segunda pressão sucedeu enquanto o homem fazia sua reivindicação, o coro da população. A manifestação em massa foi um fator vital para a decisão do rei de ceder-lhe um barco a troco de nada. Mas mesmo essa pressão social não nasceu de nenhum nobre sentimento, senão do próprio interesse dos cidadãos em terem, eles, o acesso à porta. Saramago expõe uma visão pessimista sobre as ações humanas ao reconhecer que toda ação parte de um sentimento individualista de interesses.
Por fim, o protagonista da história passa por um momento em que fica claro que sua determinação, que até aquele momento lhe abriu portas, poderia resultar no desperdício de sua vida se sua determinação transformasse a busca da ilha desconhecida em uma cega obsessão. A busca pelo ideal sonhado cria uma densa bruma diante do ideal vivido, que ao passo de pouco tempo nos distancia de um concreto para uma miragem. A percepção de que a tão sonhada busca é a busca de si nos remete a idéia de que as maiores transformações não estão somente no largo mundo exterior, mas nos cantinhos de nossa mente.